terça-feira, 27 de outubro de 2015

O cansaço, a crise da alteridade e a África

Há de se reconhecer uma certa solidão do Homem em nossos tempos, tal sentimento de exílio se relaciona a “morte” – simbólica e prática? – das utopias pós 1989. O triunfo da visão mecanicista baseada na práxis sobre o sonho – utópico? – de uma comunidade comum resultou em uma “sociedade do cansaço”. O homem contemporâneo está imerso em um esgotamento excessivo que em última instância torna-se violento, pois nega a ação coletiva real – ficamos presos em nossa individualidade/coletiva virtual – aniquilando se assim a proximidade.
Um dos ensinamentos do “deus em carne” Cristo foi o “amar ao próximo”, contudo a modernidade comprova o que já havia alertado Nietzsche tempos atrás de que o verdadeiro evangelho morreu na cruz. Ainda sobre Nietzsche, o cansaço e a sociedade moderna – baseada como Hannah Arendt afirma no “labor” – podemos pensar na “pedagogia” proposta pelo filosofo alemão que valoriza o “ver”. Segundo o mesmo, a capacidade de “ver” se reflete na contemplação, ação essa banalizada na "sociedade do cansaço"o que  resulta numa incapacidade de conhecer o outro e o mundo - já que conhecer é se aprofundar nas coisas – tendo como consequência uma sociedade doente no que tange a alteridade.
Dito isso podemos mergulhar um pouco no continente africano, já que nossa incapacidade de reconhecer o outro e portanto de nos reconhecermos – no melhor estilo Caetano Velosos em sua música “O quereres” – reflete diretamente em nossa “manca” identidade nacional e na reprodução cotidiana do racismo. Muidinga e Tuahir – personagens de Mia Couto no livro “Terra Sonâmbula – evidenciam em suas vidas o peso de uma História opressora marcada pelo colonialismo, esse por sua vez, gêneses do mundo moderno calcado na exploração da força de trabalho e consequentemente do cansaço.
         Essa sociedade que em sua “hiperatividade” gera o cansaço ocasiona também em uma alienação do passado e numa abreviação do futuro que torna-se um presente contínuo. Nesse presente que não passa, tudo torna-se suspenso e fugaz devido a necessidade constante de satisfação do "eu". Em tempos assim os homens que se preocupam com a relação entre tempo e sociedade dormem acompanhados por pesadelos kafkianos, pois como metaforicamente demonstra o mesmo Mia Couto em sua alegoria sobre a suspensão do tempo pelo conflito armado em Moçambique, o distanciamento entre o passado (o velho Tuahir) e o futuro (o jovem Muidinga) do presente ocasiona no caos da guerra.

       Em suma, em tempos de individualização alienante onde o perigo de esquecermos do outro torna-se tão pungente, lembro-me de meu grande amigo Fernando Mandinga – da Guiné Bissau – cuja a oralidade foi de fundamental importância em minha formação enquanto brasileiro – consciente de nossa matriz africana – e de “intelectual” crítico dessa “sociedade do cansaço”.

terça-feira, 17 de março de 2015

O leviatã, o medo e o inimigo.


Hobbes buscou na Bíblia a inspiração para o título de sua obra mais importante, o “Leviatã”. Segundo o livro de Jó o Leviatã é o maior dos monstros marinhos, uma criatura enorme relacionada durante a Idade Média pela igreja ao quinto pecado, a inveja. Para Hobbes Leviatã é o nome dado a “superestrutura” formada de forma artificial pelos homens  vitimados pelo medo uns dos outros e que portando se veem obrigados a sujeição frente há um soberano. Ou seja, o Leviatã é o Estado.
          O medo é portanto o elemento principal para a formação do Estado, pois numa situação limite como a experimentada no “estado de natureza” o homem estaria em uma “guerra de todos contra todos” sendo
 a única solução um pacto social – contrato social – onde os indivíduos em um consenso se sujeitariam em troca de proteção aos ditames de um soberano. Logo a sociedade se tornaria um imenso “monstro” que devido o medo se formou.
Hoje em dia vivemos uma situação onde esse Leviatã continua usando o medo para legitimar seu governo, porém cabe aqui fazer dois apontamentos:
1° A passagem do mundo Moderno para o mundo Contemporâneo  – a ascensão da burguesia ao poder durante a revolução gloriosa na Inglaterra (1688), na independência dos EUA (1776) e posteriormente a Revolução Francesa (1789) – resultou numa relocação do papel do “trabalho” na sociedade, o “trabalho passou a ser visto como o elemento mais importante da “vita activia” deixando a “ação” política em segundo plano. Dessa forma a esfera social – do “trabalho” – interferiu na esfera política contaminando-a com os interesses privados. Resultando na submissão dos interesses e estruturas públicas ao interesses privados do trabalho e sua eventual possibilidade restrita de acúmulo de capital.
        2° O desenvolvimento dessa sociedade passa - entre outras coisas -  pelo controle de forma extremamente violenta dos cidadãos – aqui se entende a violência como “negação”. Para se manter o controle da sociedade usa-se o medo do “outro”, daquele que se difere do patrão imposto pelo discurso dominante. O pobre, o negro, o gay, o islâmico, o comunista, etc. são elementos a serem temidos pois cada um oferece uma possibilidade de ruptura do “status quo”.
         Ou seja, o monstro teorizado por Hobbes assume hoje a figura de um monstro que espalha através do terrorismo de Estado a imagem de um inimigo que é tratado com a mais severa violência, lhe é negado a propriedade, a liberdade, a educação, o emprego e em extremo a própria vida. O medo do outro legitima a ação violenta do Estado aos grupos tidos como inimigos – marginais – pois como dito no início o Estado surge para eliminar o medo e oferecer a solução. E numa sociedade onde o medo se baseia na perda do consumo e num moralismo conservador os indivíduos e coletivos que tentam romper com a lógica em vigor são designados inimigos.



sábado, 10 de janeiro de 2015

O fim da liberdade?

E a liberdade jaz a beira da morte em pleno começo de 2015, um duro golpe foi dada na mesma quando dos irmãos Kouachi armados assassinaram a sangue frio desenhistas do jornal humorístico Charlie Hebdo e policiais na França.
A liberdade de expressão – frequentemente mal usada – foi posta abaixo de forma desumana. Alguns se sentem tentados em dizer que há uma parcela de culpa dos chargistas no fato, pois os mesmos – contra os postulados do islã – publicaram imagens de Alá. Porém um breve exercício de reflexão permiti perceber que caso os chargistas, jornalistas, etc. passem a encontrar “tabus” para suas abordagens, logo só poderemos falar do que não for incômodo para o Estado e para as Religiões, triste fim esse.
Logicamente há quem faça mal uso da liberdade de expressão, muitas comediantes brasileiros por exemplo, mas esses usam a liberdade de expressão para atacarem minorias – negros, homossexuais, etc. – não para criticarem características coletivas retrógradas.
Um outro aspecto a ser pensando, reside nas consequências desse fato para o mundo não europeu. Ao ver o ex-presidente francês Nicolas Sarkozy afirmando que o ataque contra o jornal foi uma ataque contra a “civilização” fico pensando a qual civilização ele se refere. Logicamente ele se refere ao civilização branca, ocidental e cristã, em momento algum Sarkozy e seus aliados pensam que o “outro” faça parte dessa dita civilização. Podemos até explanar que as raízes dessa dicotomia inconciliável – até agora – entre ocidente e oriente se baseia na imagem pintada pelo ocidente do que é o oriente no século XIX principalmente, objetivando a dominação geográfica e demográfica, ou seja, a imagem do "outro" foi criado por "nós" mesmos com o objetivo de distinguir culturalmente diferentes povos caracterizando através de elementos subjetivos avanço e atraso.
Se a liberdade se encontra tragicamente ferida, as consequências desse ataque a serem tomadas pelos governos podem resultar em seu coma ou quiçá sua morte. A instrumentalização desse ataque para endurecer as políticas de emigração ou para fortalecer o ainda presente ideário da “guerra ao terror” pode transformar a Europa em uma região altamente xenófoba. Politicamente o fato pode resultar numa alavanca para os partidos de direita chegarem ao poder e com isso implementarem políticas sociais excludentes.
O “terror” tem como características a possibilidade de aumento do controle do Estado sobre as sociedades, pela lógica do medo o Estado pode cercear as liberdades individuais – inclusive a liberdade de religião, lembre-se que a França já chegou a proibir o uso de burca em escolas em 2010 – transformando a sociedade em apenas uma engrenagem desprovida de autonomia. Por outro lado o terror oriundo de grupos autônomos de minorias somente faz com que a imagem distorcida que compõe o imaginário coletivo das culturas dominantes se efetive num falso exemplo do que é “ser” o outro.
De certo temos apenas a impressão de que quanto mais “avançamos” mais sacrificamos a liberdade.


segunda-feira, 5 de janeiro de 2015

2015


É paradoxal demais para um historiador realizar um prognóstico sobre o futuro, me arriscarei nessa empreitada apenas por uma razão teórica, A percepção de que não existe “um” passado, “um” presente e um “um” futuro. O passado é tido aqui como sendo uma construção humana, o presente é o hoje e seus acasos - fruto da ação humana -  que desencadeiam o futuro e interferem na interpretação das ações passadas, dando ao passado um sentindo. Enfim, o futuro seria uma espécie de “navio” em um mar revoltoso, cuja a direção não se sabe”, ou seja,  o futuro não existe enquanto materialidade, existe apenas enquanto ideia.
Porém, no presente essas duas instâncias e suas distintas formas de interpretação estão em conflito, sendo o motivo o fato de que a sociedade humana ao se dividir em substratos sociais hierarquizados por uma série enorme de pré-requisitos como:  etnia, religião, orientação sexual, gênero, acesso a cultura e sobre tudo a desigualdade gerada pela diferença entre pobres e ricos, gera um embate no âmbito da práxis e do discurso cujo objetivo é a transformação ou a manutenção das esferas econômicas e políticas de um município, estado, país e do mundo.
Essas diferenças citadas acima são desdobramentos da força social que no século XVIII triunfou com suas perspectivas acerca da organização do Estado e sua relação com a economia. Uma consequência portanto das duas revoluções ocorridas no dezoito, a “Revolução Industrial” – processo iniciado a partir segunda metade de 1700 -  e a “Revolução Francesa” – processo iniciado em 1789 e finalizado em 1799[1] por Napoleão e os girondinos. O século XIX assistirá extasiado – graças aos avanços técnicos e suas consequências culturais, sociais, políticas e econômicas – a consolidação do modelo liberal enquanto regra mestra da organização da vida no ocidente. Gradativamente – ao custo de guerras, extermínios étnicos, etc. – esse modelo se espalhou pelo globo.
Hoje em dia vivemos a radicalização dessa concepção, a lógica existente no mundo transformou como meta principal o consumo, tudo que produzimos é um “meio” para um “fim”, em nada mais somos capazes de encontrar um fim, o celular é constantemente substituído como forma de mostrarmos nosso lugar social. Logo, a esfera humana da política sofre um intenso esvaziamento, pois a mesma se encontra no outro campo da “Condição Humana”. Enquanto o “trabalho” se relacionaria com a chamada “Vita Activa” a “ação política” se encontraria na esfera da “Vita Contemplativa”. Enquanto a primeira se define enquanto criação do mundo através de seus objetos a segunda se define pela afirmação da pluralidade humana através da política (discurso e ação). Nesse sentindo a ação política seria responsável por driblar a finitude humana ao elaborar formas de organização que transcendem o espaço e o tempo dando ao presente e ao futuro estruturas políticas capazes de englobarem toda a pluralidade.
Sendo a dimensão da política baseada em ideias e o mundo de hoje organizado em torno do material, assistimos há um esvaziamento do espaço político na medida em que o mesmo torna-se apenas um espaço para a satisfação dos interesses privados, relacionados a “Vita Activa”. Esse esvaziamento do espaço político torna possível que características do totalitarismo assumam o poder – como demonstra Hannah Arednt – tendo como consequência a amplificação da violência na sociedade. Vivemos em tempos “sombrios”, onde a violência é a resposta para a desigualdade social de ambos os lados, os desafortunados usam a violência como forma de atingir aquilo que desejam – desejo esse que é muitas vezes criado a partir da indústria cultural. Essa forma de violência é tida como “objetiva” e do outro lado o Estado usa a violência para reprimir e manter o status quo, sendo portanto uma forma de violência “subjetiva”. Além dessas duas formas de violência, temos ainda a violência simbólica, proposta pelo capitalismo e suas propagandas, que reduzem o homem e o meio a consumidores e fornecedores apenas, esvaziando a sua essência latente de “ser” e de “estar”.
O objetivo desse Estado do medo é administrar a vida social através do medo – do outro – incentivando assim o mercado da segurança, a construção de muros em torno de bairros, o isolamento das pessoas em casas, as igrejas que lucram com a existência de um sistema desigual, etc.
Portanto em 2015, acredito que o mundo continuará seguindo rumo ao abismo social e ecológico, as forças políticas liberais tomaram o Estado e o transformaram num facilitador de suas ações, a ideologia morreu – o anzol da direita fez a esquerda virar peixe[2]. Vivemos na sombra de um “Estado de bem-estar social” criado para conter o anseio por mudança e ganhar votos. O conservadorismo tornou-se forte, impregnando a política de visões religiosas ultrapassadas que reforçam a exclusão social e o preconceito.
Mas nem tudo se encontra perdido, talvez devêssemos combater essa “violência mítica” – segundo o filósofo Slavoj Zizek, todo estado é fundando sobre um ato de violência mítico – com uma “violência divina”. Pois segundo Walter Benjamim há um anjo da História, empurrado constantemente para frente por uma tempestade (processo histórico), que ao olhar para traz enxerga apenas destroços (injustiças) causadas por esse processo. Logo a resposta para essa situação é a violência divina ou ressentimento – daqueles que não tem para os que tem -  mas sempre se lembrando da máxima de Che: “Hay que endurecerse sin perder jamás la ternura”.
Portanto meu exercício enquanto um “Oráculo” revela-se agourento, pois se baseia na visão de um mundo gerado num presente distorcido, onde aqueles que querem mudanças sofrem por serem tidos malucos.







[1] Porém sua memória e objetivo continuariam assombrando a Europa nos séculos seguintes.
[2] Logicamente nem toda esquerda se vendeu, mas aquela que acendeu ao poder se corrompeu de forma alarmante.

quinta-feira, 17 de julho de 2014

Reflexão sobre a barbárie

Todo os Estados nascem de um crime – aqui entendido como um ato que viola a moral comum – e se legitima através da criação de um “mito das origens”, onde indivíduos entendidos como “criminosos”, ou pelo menos como pessoas moralmente questionáveis – vale dizer que como moral, compreendemos aqui a ideia de bem comum – tornam-se heróis nacionais.
Dessa forma, todos os governos mantêm em sua base os ossos e o sangue de vítimas históricas, pois o processo de constituição de uma sociedade passa inevitavelmente pelo conflito. A colonização, o neocolonialismo, a guerra ao terror, as ditaduras, etc. são exemplos históricos de como sistemas políticos buscam se legitimar através da violência objetiva, ou seja, de uma forma de violência que tem objetivos, nesse caso poderíamos simplificar esses objetivos como a manutenção do “status quo”.
Tal fato nos leva a uma outra dimensão do debate, se vivemos num mundo onde experimentamos um era “pós-ideológica” – onde não há mais espaço para ideologias políticas e consequentemente para o debate, pois a biopolítica se resume hoje apenas na administração da vida em sociedade – temos portanto uma sociedade onde a política não desperta um sentimento de “pathos”. Esse triunfo da sociedade liberal resultou numa maximização da valorização do “eu” (indivíduo) onde esse hedonismo consequentemente resulta numa visão de mundo onde a violação do Outro (indivíduo) é injustificável. Porém, se transformamos a violência que atinge o outro em uma missão “sagrada” – como a causa do bem contra o mal – temos ai uma legitimação moral para a violação do outro. Motivos étnicos e religiosos são então instrumentalizados para servirem como “tijolos” na construção de interesses político-econômicos. E o “medo” age nesse contexto esvaziado de “pathos” como aglutinador em torno de um mesmo objetivo.
A causa do bem contra o mal nos remete diretamente a ideia das religiões, pois para que exista o bem deve existir o mal, mas o que é o mal?
Nessa linha de raciocínio o mal seria aquele que age diferente, que acredita em um deus diferente, que tem uma moral diferente. Em resumo o cristão vê o islâmico como mal, o islâmico vê o budista como mal, o conservador vê o liberal como mal, o liberal vê o comunista como mal, o comunista vê o religioso como mal, etc. evidenciado então um círculo vicioso infinito. Dentro desse círculo está a ideia de que existe para todo o bem uma ideia de mal, essa fronteira que separa contrapartes sociais é na verdade uma forma de se legitimar a violência contra o outro. Portanto o outro não é um dos nossos e nós nos vemos como civilizados, resta ao outro ser bárbaro.
Um exemplo engraçado da instrumentalização das ideias religiosas está em Israel, lá cerca de 70% da população se declara como atéia e essa mesma população (mais de 80%) acredita no argumento de que Israel tem um direito divino sobre a terra. O argumento religioso age como mito fundador da sociedade, ajudando a esconder os crimes do Estado Israelense. Portanto a alteridade é minimizada, sob as brumas dos objetivos político-econômicos.
Difícil traçar uma solução para isso, pois tais conflitos são hoje pandemias generalizadas, onde eles ocorrem em cada região do mundo de forma diferente, pois a maior característica do modelo capitalista é justamente ser adaptável a todos os contextos – o capitalismo tem como característica destotalizar o sentindo, não sendo global no nível do sentindo, pois não há uma civilização capitalista, a globalização tem como mérito justamente demonstrar que o capitalismo pode se adaptar a qualquer situação.
Em suma diagnosticar uma solução é uma tarefa impossível, talvez seja possível apontar estratégias que permitam traçar um melhor caminho para as sociedades humanas, nos baseando no que Kant chamou de “Imperativo universal”. Devemos elaborar imperativos que delineiem formas de se agir na relação entre homem e homem e homem e natureza que sejam universais – claro que isso pode levar há uma forma de centralização da imagem do homem, deixando-se de ver sua pluralidade, mas é um risco que devemos correr. Outro aspecto dessa mudança é pararmos de pensar que é possível arrumar o carro em movimento, o sistema capitalista não é passível de ser reformado visando uma melhoria das condições da relações de posse e trabalho – cerne da desigualdade – devemos pensar em um modelo alternativo que promova como principal não o lucro hedonista mais sim o crescimento das condições de bem estar coletivas. O progresso da ciência não deve se pautar na maximização dos lucros para os conglomerados, mas sim na resolução de problemas e questões sociais, econômicas, técnicas, teóricas, etc. A religião deve parar de se colocar enquanto índice de moral de uma sociedade e passar a agir como instância de conforto do “eu” – talvez isso signifique o fim das religiões institucionalizadas.

Bem, esse são apontamentos feitos numa tarde pós o café onde se digere além de alimentos notícias da barbárie humana nos quatro cantos do mundo, barbáries que são diretas e indiretas. Talvez elas não sejam plausíveis, mas como diz aquela parede pichada na França de 1968, “Soyons realistes, demandons l´impossible!”.

terça-feira, 24 de junho de 2014

Breve reflexão sobre a violência

Existem violências no mundo que passam despercebidas pelos olhares mais sensíveis, violências essas que ocorrem como decorrência de uma estrutura econômica/política/social baseada em relações de mercado. Estamos todos inseridos numa  lógica onde o  “ser” tem menos valor do que a “coisa”, a não ser que seu corpo – ou mente – possa ser de alguma forma valorizados (seja na prostituição, no esporte ou no campo científico gerando patentes). Logo a “coisa’ – que é uma propriedade privada – ganha relevância frente ao "ser", para além disso, a mesma ganha importância política e social – além da importância econômica inerente a ela.
Vivemos num mundo mediado pelas “coisas”, onde a posse e a manutenção dessa posse tornam-se fatores importantes da vida. Politicamente as “coisas” ou melhor a distribuição de capital e das “coisas” são elementos importantes na “Real Politik”. Uma vez que o ter é mediado pelo acesso ao capital e tal fato se insere dentro de um contexto de desigualdade, onde o cenário político está sob controle de forças conectadas as elites dominantes, que por extensão de seu poder econômico controlam também o cenário político. Portanto a política é também uma forma de se manter – conservadorismo – a distribuição de capital e “coisas”fluindo na mesma direção.
Socialmente, as “coisas” ganham importância na medida em que demonstram “quem nós somos”, o “ter” um celular não se relaciona apenas a possibilidade de se falar com alguém, mas sim ao “status” inerente ao ter um celular de última geração. Como essa lógica está presente em todos os ramos do processo de circulação de mercadorias, encontramos uma sociedade onde a noção de cidadania perde seu valor frente a noção de “ser” consumidor.
Percebemos que este dois aspectos servem para manter as engrenagens da economia em funcionamento, tanto no processo de conservação das engrenagens (aspecto político) quanto no processo de renovação e circulação das “coisas” através da relevância social imbuída ao “ter” – aqui vale lembrar que as “coisas” mantêm uma característica de serem temporalmente validadas, o que gera uma corrida constante pela substituição da “coisa” velha pela “coisa” atualizada.
E para que tudo isso funcione como um relógio, o Estado deve garantir através da violência – não somente física – a continuidade da lógica que rege a sociedade.
Se como violência concebermos as ações que ferem o “ser”, automaticamente teremos uma expansão dentro do horizonte do que compreendemos por violência. Dessa forma a violência se tornaria também a falta de acesso à educação, saúde, saneamento básico, etc. Vale lembrar que em última instância a falta desses e de outros serviços ocasionam inclusive na morte biológica. Seja pela doença ou pela criminalidade na qual muitos excluídos são “levados” a adotarem como estratégia de sobrevivência.
Enfim, podemos dizer que há uma violência direta visível que é tanto aplicada pelo Estado como também imposto aos cidadãos através da criminalidade, como também uma violência indireta – subjetiva – usada como forma de se manter o “status quo”. A diferença entre as duas pode ser percebida pelo fragmento abaixo extraído da obra de Mark Twain intitulada de “Um ianque na corte do Rei Artur”.

“Um cemitério poderia conter os caixões preenchidos pelo breve Terror diante do qual todos fomos tão diligentemente ensinados a tremer e lamentar, mas a França inteira dificilmente poderia conter os caixões preenchidos pelo Terror real e mais antigo, aquele indizivelmente terrível e amargo, que nenhum de nós foi ensinado a reconhecer em sua vastidão e lamentar da forma que merece.”

segunda-feira, 16 de junho de 2014

A mentalidade coletiva

A origem do preconceito racial/social/ de gênero, etc. está ligada a construção de nossa sociedade, nesse sentido o preconceito pode ser visto como um “ethos” coletivo perpassado de geração para geração através de rituais, símbolos, instituições, tradições e tudo mais que compõe a cultura de um povo.
A lógica inerente ao nosso sistema representativo democrático sempre foi a manutenção do poder político pelas oligarquias, inicialmente latifundiárias, posteriormente com o desenvolvimento técnico e industrial de nossa economia, os proprietários passaram a dividir o espaço público da política com os industriais liberais.
Numa estrutura materialista como a existente hoje em todo o globo -  deve-se ressaltar a existência de bolsões onde essa lógica não se aplica como no caso de comunidades alternativas, camponesas, etc. – o projeto político anda lado a lado com o projeto econômico. Dessa forma a determinação da “ação” política – dá criação de leis, instituições, políticas públicas, execução de obras, etc. – passa pelo interesses econômicos. Dessa forma é importante percebermos que o sistema de trocas existentes numa sociedade tem como característica influenciar na produção política, cultural, científica, artística, etc. De forma simplificada, a maximização da produção científica nos últimos dois séculos não poderia ter ocorrido sem a ascensão do modelo capitalista de trocas.
Porém sabemos que o sistema anterior ao estabelecimento do capitalismo do ponto de vista político não favorecia a instalação do mesmo, já que sua estrutura estava construída sobre uma lógica que não privilegiava o aspecto individualista. Somente com o advento dos pensamento iluminista no século XVIII somado aos avanços técnicos obtidos pela “Revolução Inglesa” – aqui vale um paralelo de que desde o início do mesmo século a burguesia inglesa já havia se consolidado dentro da esfera política desde o fim da “Revolução Gloriosa” – que se tornou possível a substituição – inclusive violenta – do Antigo Regime pela ordem Burguesa.
A partir da “Revolução Francesa” de 1789 – mesmo sabendo de que a mesma ia ainda retroceder em alguns aspectos nos anos seguintes, para se consolidar apenas em 1830 na “Revolução Burguesa” – inaugurou-se uma nova forma de se pensar o mundo, onde o “ser”possibilitava e legitimava a lógica capitalista. A burguesia legitimou o individualismo através de uma nova forma de se pensar o mundo, a política, a natureza e a economia. Daquele momento em diante era o homem, mais precisamente sua razão que construiria e daria sentido ao mundo, o indivíduo teria seus direitos (liberdade, igualdade e propriedade privada) garantidos – em oposição ao poder absolutista.
Mas vale ressaltar que essa sociedade, assim como todas as precedentes, tinham como objetivo a manutenção do poder, as peças trocadas garantiam a ascensão de um novo grupo ao poder – ao lado de antigos membros da elite e do clero. Mas numa economia baseada nas relações de troca e no acúmulo de capitais, eram os burgueses quem detinham o poder quase que absoluto do cenário político. E o funcionamento do regime dependia – assim como outros – da desigualdade, pois essa era a responsável por gerar as “castas” existentes na sociedade que tinha como pilar central a noção de posse sobre os meios de produção.
Para aqueles que não tinham a posse da propriedade privada, restava apenas vender a sua força de trabalho e como esses existiam aos milhares, o salário e as condições poderiam ser – assim como ainda o são – as mais precárias, pois existiria sempre uma massa de trabalhadores cujo o 1 Xelim por dia era o suficiente para garantir sua sobrevivência.
Dessa forma, se estrutura a sociedade burguesa republicana, uma sociedade que precisa da desigualdade para manter-se e que exatamente por isso precisa articular concessões, benevolências, repressões, tradições, ritos, símbolos com as demandas materiais.
No Brasil a introdução do modelo capitalista se dá mais tarde, apenas no fim do século XIX – consolidando-se apenas em 1930 – de uma forma completamente adaptada a realidade colonial de nossos trópicos.
Não há como se pensar que a substituição de uma modelo de organização – político, econômico, filosófico, etc. – signifique a completa ruptura com o sistema anterior, permanências são sempre passíveis de serem identificadas – somente as “Revoluções” teriam como característica a ruptura completa com o passado. Logo, a introdução do capitalismo no Brasil conviveu com práticas remanescentes – tanto no plano prático quanto ideológico – do período colonial. Não havia uma burguesia no Brasil – pelo menos até a virada do século XIX -  mas havia liberais que ansiavam pela modernidade que o capitalismo oferecia, que ansiavam pelo futuro modernizante das ciências, das estradas de ferro, da cultura europeia.  Estes homens, inspirados na potência americana dos EUA e apoiados pelos setores militares positivistas encerraram no Brasil as práticas políticas oriundas dos tempos coloniais e instauraram em seu lugar uma república oligárquica.
A exploração da força de trabalho, também fora mudada, do escravo passou-se para a mão de obra livre, mas a herança do tratamento dado ao escravo permaneceu nas práticas de relação entre patrão e funcionário (principalmente nos campos, haja visto o processo de imigração). Empurrados para a periferia das cidades, obrigados a subserviência no campo, explorados, consumidos, tragados, a mão de obra brasileira sofreu. Apenas no governo de Vargas houve a criação de leis trabalhistas – essas criadas como forma de se controlar os operários, já que a mesma CLT não se aplicava aos trabalhadores do campo, inclusive vale lembrar que um fator relevante para o golpe de 1964 é vontade manifestada pelo então presidente João Goulart de realizar a reforma agrária. Além da exploração econômica a manutenção da “ordem” burguesa passa também pela exploração cultural e social, há nos grupos dominantes a necessidade de se reformular o imaginário social e pessoal visando se criar ritos, tradições e símbolos que através de preconceitos, estigmas, etc. garantam a manutenção do sistema.
Logo, a elite de um país tende a organizar uma série de ferramentas que vão da criação de uma história oficial, instituições, tradições, feriados, heróis nacionais, símbolos, inimigos, etc. para estruturar e tornar “pedagógico” a organização da estrutura social, varrendo para debaixo do tapete certos aspectos. Ao se relacionar a pobreza com a cor negra, nós esquecemos de um processo escravista que ao ser encerrado não ofereceu nenhuma dignidade aos ex-escravos, ofereceu somente a repressão e a exclusão, esse processo por sua vez foi responsável por consolidar a imagem do “preto” como pobre, consequentemente com tendências a marginalização. Talvez por isso algumas pessoas sintam um frio na espinha quando um “negro” caminha na sua direção na rua.
O preconceito – seja ele qual for – é então uma espécie de “estrutura de pensamento coletivo” que é perpassado socialmente através de várias manifestações e que estaria presente na composição de nossa cultura – sim temos uma cultura preconceituosa. Naturalizando-se assim as divergências na sociedade, pois vivemos ainda na lenda do “indivíduo que se faz”. Porém nessa conta, se esquece de levar em consideração o chamado “Capital Cultural” – o acesso à educação, cultura, oportunidades, os contatos sociais, etc. – que são completamente definidores em nossa sociedade. Basta pensar na importância de uma boa escola fundamental no processo de efetivação do sonho do ensino superior numa universidade federal.

Vivemos o resultado do processo de manutenção do capitalismo e consequentemente do domínio de uma elite liberal – isso não significa uma conspiração de homens brancos para controlar o passado, o presente e o futuro, pois como um processo, essa manutenção é construída gradativamente a partir das circunstâncias e interesses daquele momento histórico específico – que conta com a apropriação do Estado pela elite para efetivar seus interesses econômicos, gerando como refluxo uma sistema cultural modelado a partir das expectativas materiais.